sexta-feira, 19 de abril de 2013

Leões.


Não foi para aquela tarde de sol, já empoeirada pela passagem dos anos, que ele tinha escrito aquelas linhas todas embebidas de saudade. Não havia sol, entretanto, era uma tarde chuvosa que sussurrava entre dentes um entardecer laranja, terrível. Hoje, cada palavra era uma certeza doce, mergulhada em meio às tantas coisas por fazer e à velocidade dos ponteiros do velho relógio sobre a cômoda vitoriana cor de mogno-indiferença. Hoje eram copos ociosos de café quente, como o próprio verão, da rigidez de suas carnes novas e roupas leves. Ele tinha mil páginas a serem lidas, algumas pilhas de muitos livros pelo quarto e uma estranha pontada de admiração pelas pedras, que não precisavam de vinho. Mas hoje ele estava um pouco mais alto. O barulho não era estridente o suficiente para abafar os passos dele. Ele refinou aquela confiança, renasceu uma meia dúzia de vezes e com um sorriso obtuso nos lábios, hoje era todo certeza, filho de uma vontade superior. Enquanto rasgava com passos firmes a rua de pedra, pensava na chuva e chovia por dentro. E a sua tempestade rugia um pouco mais alto, era a sua própria tempestade, ele sempre gostara de leões. Os piores, os ferozes, os orgulhosos, os mais dourados. O pensamento ganhava forma longe dele, enquanto distraído como uma nuvem, ele seguia em frente. Desavisado dos perigos, ele podia andar sem mais medos. Sem se importar com o tamanho das presas, os leões pareceriam sempre mais fáceis, domáveis. O rugido da chuva aumentou brusco, e com um sorriso, ele olhou para o céu sem mais apertar os olhos. E rugiu. Afinal, os problemas são leões. Sem dentes.

sábado, 13 de abril de 2013

Inclemência.


Por tantas e tantas vezes eu preferi a mudez premeditada das minhas palavras ao silêncio ensurdecedor dos seus olhos... Eu me acostumei à fuga e ao medo. Ao desespero de ver crescer viçosa a saudade enquanto eu tentava cobrir com a indolência das tardes entre amigos a realidade latente. Mas não me leve a mal. Eu tenho os meus próprios labirintos e não me interessa a saída deles se você chega voando de algum lugar distante, asas cansadas, deita na grama ao meu lado e dorme instantâneo como uma fagulha. Pólvora vertendo dos seus dedos espalhados sobre os meus cabelos frios, esperando que algum fogo lhe ofereça uma nova força. E na fugacidade do encontro, pólvora e fogo, faça-se luz, o escândalo sutil das bocas unidas, faça-se vida, ainda que breve. Faça-se fumaça, e na brancura inclemente, faça-se desencontro. As esquinas sem calor se estenderão numa profusão de postes amarelados, de casos e acasos e eu me exigirei um sorriso elegante, a clareza, a prudência, até que as vítimas da minha frieza não mais satisfaçam o preço alto do meu comprazer. Enfim, serão duas da manhã e o vento trará em seus lábios frios o sussurro rouco do passado e as suas mãos vão tocar meu rosto ainda inconformado, mas mudo. De quando em vez, estarrecido, eu ainda te sentirei respirar contra a frieza do meu rosto, dos meus olhos sóbrios, das minhas razões afiadas, mas os meus braços não são mais fortes e a minha mente turvou-se em uma armadilha lenta e inevitável como o tempo. Marcando passos na calçada molhada, veneno e cura dançarão a valsa lenta das horas enquanto eu me acompanharei de algumas garrafas e um resquício de certeza, o orgulho interiorano e as obrigações da boa praxe. Eu decairei lentamente entre taças de vinho e, se acaba a liquidez do álcool, restar-me-á a borra, a lembrança e o vício. E você há de perdoar-me a vergonha de um vício. O que mais me matou todos esses anos não foi o álcool, mas a abstinência dos seus olhos.

sábado, 6 de abril de 2013

Por Medo de Ser Triste.


Eu não lembro mais quando foi que eu descobri que eu sabia mais de você que de nós dois, mas eu sei que por algum motivo bobo eu achei aquilo tudo muito engraçado. Eu sabia que os seus olhos mudavam de cor se um fato qualquer te turvava a opinião sempre afiada e que eles eram a sua raiva e seu orgulho, porque eles te contavam quem te conhecia e era capaz de ver seus segredos. Eles te diziam quem era capaz de te descobrir e por isso, de quem você devia ter medo. Eles eram seus piores inimigos, dado a fachadas como você sempre foi. Sabendo de cor as tempestades que você carregava, eu não deixava de levar um guarda-chuva pra te guardar de todas aquelas trovoadas. E quando aquele leve esgar do lado esquerdo do seu sorriso dizia que o olhar não era condescendente de verdade, eu ria daquele jeito que você não conseguia evitar e você se desmanchava em um sorriso daqueles meus, que você nunca cederia a mais ninguém. Você nunca teve medo de me dizer a verdade e isso me assustou a ponto de me agarrar a você que era meu abismo. Sabe, eu queria voar e se eu achasse que podia em algum lugar, era dentro do seu mundo. Eu de vez em quando acordo no meio da noite sentindo as dores nas costas, onde as marcas dos tombos ainda figuram. E quem sabe fosse mesmo a destreza com que você tecia as tardes que passamos na varanda entre vinhos e planos quem teceu os nós? Ficaria feliz em te perguntar uma sabatina inteira, mas nós dois não temos mais nem um minuto. Eu não queria uma resposta sóbria, eu não tenho sobriedade suficiente pra te ouvir falar a verdade de novo. Eu nunca pensei que te saberia melhor. Mas hoje eu te conheço ainda mais e lamento e mantenho a distância. Me corrói o medo de subir no palco, mas a plateia é mais segura. Desculpe por esse desabafo, eu não quero que você sofra lendo isso, eu sei que não vai. Vai ser mais um elogio pro seu ego escandaloso. Mas a verdade é que eu não quero que você sofra nunca. De tudo que já existiu de desejo, é uma ofensa um sofrimento seu. Seja feliz, em respeito às lágrimas que derramaram por você. Seja feliz, por favor. Seja feliz, nem que seja por medo de ser triste.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

A Janela de Caixilhos Azuis.


Estava frio quando a noite esvoaçou negra sobre as árvores da avenida, o vermelho sangrou os meus olhos pálidos de sono e um espelho qualquer me disse que há algo em mim que não estava ali antes de abril. Eu que nunca me apeguei ao passado, sempre temi o futuro e as suas navegações cegas. As trepidações que o incerto trazia me revoltavam e amedrontavam, mas por alguma razão alheia à minha consciência eu sorri quando notei a transparência dos meus motivos. Meus olhos não eram mais tão maliciosos e a cor deles não era tão ácida quanto as opiniões que eu tinha sobre mim, sempre exigentes como faria uma senhorinha aiuruocana do alto do seu janelão de caixilhos azuis. Eu fiz a guerra dos grandes capítulos vigorar por tempo demais. Confabulei a minha prisão com os requintes que me forneciam a prática social e a elegância do sorriso de quem porta uma dor incurável. E eu acordei noite pós noite, sem ar, enquanto murmurava nomes, frases esquecidas e sorrisos escandalosos. Com os olhos fechados, retesei meu corpo até que eu conseguisse tocar os meus sonhos mais escuros. E caíram no chão as correntes que, liberto, eu prendia aos pulsos para, acostumado que estava ao peso da obrigação, eu pudesse me sentir impelido. A noite impiedosa apagou as luzes do apartamento e, sozinho, pude perceber que fui por muito tempo o que queriam de mim. Primei pelas expectativas alheias e assisti, do alto de uma janela de caixilhos azuis, as caravanas passarem sob o meu olhar desfocado e sempre voltado para o voo dos pássaros negros da saudade. Mas essa noite o vento estava forte demais para que eu assentisse uma nova mudez. Eu quebrei o pacto e deixei que o silêncio dos culpados me levasse um pouco mais longe. Abril me trouxe uma nova solidão e eu não permitirei que ela se vá sem ser sentida, dos meus olhos, uma nova chama queimará sem mais combustível que a própria loucura. Eu escolhi tomar parte na torrente dos meus sentidos e me permiti uma deriva lúcida e a bênção de um maremoto novo. Reneguei o claustro e o medo, e sem linhas pra seguir, deixei a janela de caixilhos azuis e me embrenhei pelas ruas mais tortas. Perto ou longe, só me interessa que, estúpida e incontrolável, a deriva me leve a novos portos.