Estava frio quando a noite esvoaçou negra sobre as árvores
da avenida, o vermelho sangrou os meus olhos pálidos de sono e um espelho
qualquer me disse que há algo em mim que não estava ali antes de abril. Eu que
nunca me apeguei ao passado, sempre temi o futuro e as suas navegações cegas.
As trepidações que o incerto trazia me revoltavam e amedrontavam, mas por
alguma razão alheia à minha consciência eu sorri quando notei a transparência
dos meus motivos. Meus olhos não eram mais tão maliciosos e a cor deles não era
tão ácida quanto as opiniões que eu tinha sobre mim, sempre exigentes como
faria uma senhorinha aiuruocana do alto do seu janelão de caixilhos azuis. Eu
fiz a guerra dos grandes capítulos vigorar por tempo demais. Confabulei a minha
prisão com os requintes que me forneciam a prática social e a elegância do
sorriso de quem porta uma dor incurável. E eu acordei noite pós noite, sem ar,
enquanto murmurava nomes, frases esquecidas e sorrisos escandalosos. Com os olhos
fechados, retesei meu corpo até que eu conseguisse tocar os meus sonhos mais
escuros. E caíram no chão as correntes que, liberto, eu prendia aos pulsos para,
acostumado que estava ao peso da obrigação, eu pudesse me sentir impelido. A
noite impiedosa apagou as luzes do apartamento e, sozinho, pude perceber que fui
por muito tempo o que queriam de mim. Primei pelas expectativas alheias e
assisti, do alto de uma janela de caixilhos azuis, as caravanas passarem sob o
meu olhar desfocado e sempre voltado para o voo dos pássaros negros da saudade.
Mas essa noite o vento estava forte demais para que eu assentisse uma nova
mudez. Eu quebrei o pacto e deixei que o silêncio dos culpados me levasse um
pouco mais longe. Abril me trouxe uma nova solidão e eu não permitirei que ela
se vá sem ser sentida, dos meus olhos, uma nova chama queimará sem mais
combustível que a própria loucura. Eu escolhi tomar parte na torrente dos meus
sentidos e me permiti uma deriva lúcida e a bênção de um maremoto novo.
Reneguei o claustro e o medo, e sem linhas pra seguir, deixei a janela de caixilhos
azuis e me embrenhei pelas ruas mais tortas. Perto ou longe, só me interessa
que, estúpida e incontrolável, a deriva me leve a novos portos.
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