quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Gosto (aos 30)

Gosto mesmo é de risoto, olhos que enxergam mais que o aparente, alguma pretensão educada e frases bem costuradas. Gosto de esquentar mãos frias e das tardes que as esfriam, as mesmas que eventualmente pintam de laranja o céu que ao meio dia era de uma azul inquestionável. Gosto de algumas taças de um vinho seco, do céu estrelado que Aiuruoca me empresta e da cama de uma pousada esquecida pelo tempo e pelos planos da engenharia moderna. Gosto da solenidade do casario barroco do Ouro Preto, das manhãs que acordam estridentes em Belo Horizonte, dos querubins tiradentinos que prometem alguma salvação aos pecadores e da poesia de Dantas Motta. Gosto de pequenas igrejas, cortadas ao querer modesto das pequenas cidades, que suspeitam incrédulas o sucesso de seu próprio povo e dos prédios tão altos que ameaçam o céu mineiro-capital. Gosto de fugir despreocupado pra qualquer mato, praça ou praia que me abstraia dos meus muitos pensamentos e de, depois de muito sondar o medo, o desejo e a coragem, voltar pra casa marcando passos na calçada molhada de chuva. Gosto principalmente dos meus amigos, das suas vergonhas, preguiças, dragões e tédios. Gosto de ler textos sem nexo e lutar furiosamente por compreensão. Gosto de viajar, de arrumar as malas na ida sem cogitar a possibilidade da volta e de chegar em casa pra reclamar confortavelmente do desconforto do meu colchão. Gosto de relembrar o passado com saudade e gosto das formas que a fumaça das fotos queimadas desenha no ar. Gosto muito do futuro, das promessas que eu faço a mim mesmo na calada da noite e de alinhar meus esforços na manhã seguinte. Gosto de tardes chuvosas, quando eu estou em casa e quando estou caminhando na rua. Gosto de aprender, de me reinventar e de descobrir que limites só são limites até que eu os extrapole.  Gosto muito de Minas Gerais, de pão de queijo, do Mercado Central de Belo Horizonte, do Municipal de São Lourenço e de Pouso Alegre, dos armazéns d'Aiuruoca, de doce de leite e do queijo minas que Tia Aracy fazia quando era o tempo das águas. Ainda gosto de rebuscar manuscritos e de resfriar infernos pessoais. Gosto de me apaixonar profundamente, de acordar quando meu sono deixa a cama e que cedam a algumas das minhas muitas vontades. Gosto de ir ao cinema apenas pela companhia, ou sem companhia, ler pela vigésima vez o mesmo livro e rir dos meus modos incertos. Gosto de sorrisos, de sorrir e de que sorriam, sem escolher destinatários, sem comprometer remetentes. Gosto de declarar guerras, de longas conversas profundas, de noites entre amigos e de tomar mais uma cerveja com a Dona Claudia. Gosto de viajar sozinho, de firmar acordos de paz comigo mesmo e de reencontrar gente de “há tempos”. Gosto de escrever cartas que eu nunca vou enviar, de arte, de música e de me desapaixonar. Gosto de nadar em água de cachoeira, de andar sem destino certo e de deitar na grama pra dar nome certo às nuvens muito brancas e aos meus pensamentos muito turvos. Gosto de ser, ser integralmente, sem cortes, fissuras ou tensões. Gosto do cheiro dos livros novos e do barulho do folhear os antigos. Gosto do amargor valente que escarnece a doçura da pera, de abraços de corpo todo e sorriso de canto de boca. Gosto de sinceridade, da lealdade canina e de gente desajeitada, como eu. Gosto da poesia concreta e da prosa romântica. Gosto dos detalhes quase imperceptíveis, das entrelinhas e das pequenas manias. Na verdade, gosto mesmo é do gosto, doce ou amargo, do acaso, do ímpeto de tentar, da orquestra e do susto. Gosto mesmo é da vida.