quinta-feira, 29 de março de 2012

A Nova Fome.

Ele via o ônibus desafiando a gravidade pelas curvas tortuosas do bairro enquanto resmungava palavrões na voz baixa mais revoltada que se permitia. Controlador, orgulhoso, ele desenvolvia e definhava os próprios cânceres enquanto a raiva ia escorrendo em pulsações cardíacas que ritmavam como uma balada. Corrosivo como um pedaço de compreensão, ele foi deixando caírem no asfalto quente as ilusões todas ao passo que chegava mais perto de casa. Ele era um ponto em meio a tudo o que vira nos últimos dias, uma pequena desconfiança, uma possibilidade de desafeto. Ele não sabia o que o trouxera a esse lugar, o que pudera ser tão irresistível que lhe pudesse arrastar até ali. Não era inocente, houve um tempo em que ele desconfiava, casmurro entre pensamentos, muito nobre, muito Don, mas relevava os sinais, ignorava os avisos, apagava a luz e ia emergir entre os lençóis que mesmo grosseiros, deixavam transparecer algo de fragilidade. Não era ingênuo, não seria fácil enganar-se, não seria tão fácil engana-lo. Ele não sabia se por medo de estar só, por devoção ao ser amado, por uma libertina satisfação em chegar acompanhado às festas... Ele sabia que o próximo passo era muito mais que um frio na barriga, era saltar do décimo quinto andar sem saber se era capaz de planar. Mas a intransigência e a adrenalina que lhe emprestava a raiva eram um vício novo e doce. Ele estava, por fim, impregnado de uma nova certeza banhada de intenções sofríveis e se deliciava com as possibilidades que passavam reflexas pela janela embaçada. Nunca experimentara o controle, mas agora as rédeas eram suas, e estava tomado de novas racionalidades cruas... Indeclaradas, as guerras são muito mais violentas e os melhores e maiores delitos são traçados sob a carícia do silêncio. Nada seria tão novo que estivesse livre de empoeirar-se. Nada seria tão certo que não sofresse a navalha do acaso. Nada sacia mais que uma nova fome.

domingo, 4 de março de 2012

Trilogia.

Manhã de domingo despontando intransponível pela cortina sedosa enquanto eu me mexia intranquilo sobre a brancura muito sôfrega dos lençóis impressos de suor, quase acordado. O chalé ainda cheirava um misto de vinho, perfume amadeirado e pedra aquecida sob um sol recente. Brusco, um carro ruge em frente à janela translúcida do quarto enquanto eu acordo assustado, tateando a cama em busca de compreensão que serenasse o sentimento de abandono. Por estar muito “bem” acostumado à presença quente na cama, só o perfume muito marcado no travesseiro não me bastava mais. Alma torpe essa minha, que embriagada dos passeios, conversas e jantares, se banhava em promessas e se atulhava de uma eternidade falsa. Não lhe atiro culpas, mas eu perdi a conta e a vergonha das vezes em que, sozinho, eu deixei o quarto. Cambaleando desconfortável pelas ruas tortuosas, eu desfiava minha raiva em farpas atiradas cegamente até que a rodoviária atingisse os meus passos muito inertes. Minha natureza, muito orgulhosa, medrosa, acostumada a esperar, não poupava insultos sutis enquanto eu caminhava tranquilo pelas vielas, cabeça baixa, olhos semicerrados. Se um café quente me derretia o sono, eu esperava, mudo e acordado, que as poltronas solitárias do ônibus me curassem as dores, o sono e as conclusões às quais eu chegava, flores vermelhas, que desfolhavam corolas inteiras de pequenas verdades ensanguentadas sobre a minha camisa branca. Um pensamento, então, me tomava de arranque as rédeas e eu imaginava o próximo encontro, que, casual ou não, satisfaria meu sentimentalismo patife. De repente o celular tocava dentro da mochila, eu desviava o olhar e fitava o vibrar inquisitivo com o desprezo que eu dispensava a mim mesmo por estar ali, a sós com minha consciência nada complacente. Há de ser uma boa alma querendo me encontrar vivo, amedrontada pelo sumiço do fim de semana. Os que bem me conheciam não se atreviam a um contato, sabiam meu martírio e meu gosto: Estranho gostar de se enganar tanto assim, mas que é mesmo a vida sem um pouco de desventura?

***

Os passos eram calmos e contados a despeito da velocidade dos meus pensamentos. O carpete sufocava o claque dos sapatos com a mesma ciência com a qual eu sufocava os meus tremores. As palavras, repetidas meticulosamente no taxi, já estavam brotando purulentas da minha língua e machucando, afiadas, os meus lábios. Não era novidade que nós não mais nos podíamos manter juntos, mas certeza é sempre seguida de sangue e, embora disposto a sangrar, minha razão orgulhosa não lhe queria doar nem lágrimas ao tapete. O corredor estava surpreendentemente mal iluminado e meu blazer preto me sufocava um pouco ante a formalidade quase cerimonial da porta branca. Não que eu não estivesse acostumado à praxe dos alfaiates, mas não foi o sorriso costumeiro que atendeu à porta, mas o tom blasé que eu lhe ensinei durante as minhas crises. Engraçado mesmo é que nessas noites banhadas de verdades rascantes e nenhum vinho é que mais utilizamos o que aprendemos um com o outro: Eu me lembro até hoje de seu olhar de reprovação quando reproduzi seu sorriso torto, sarcástico. Um desfile de ofensas sempre se descortina saltando faíscas aos olhos enquanto parece mesmo, no fundo, implorar por mais um último beijo. A consciência que tínhamos a respeito das armas um do outro nos dispensou, por sorte, de um bate-boca melodramático e nos precipitou sofríveis nas almofadas do sofá, de onde, distantes, traçamos os planos: a separação de bens, de princípios, de amigos, de lugares e de corpos. Terminamos sem sorrisos, imparciais como juízes muito velhos pra notar qualquer semelhança, qualquer olhar atirado sorrateiramente por baixo das cortinas de ferro que construíramos. Portas fechadas, eu saía sozinho e sem coragem para me encarar no espelho do elevador que descia vagaroso os 17 andares. A sós no banco de trás do taxi, eu me revesti de uma racionalidade cientificista, insana, e aquietei os soluços com as tenazes em brasa da minha raiva. Não lhe teci escárnios, mas desferi palavrões contra cada lembrança, feliz ou nem tanto, que eu chamava, infantilmente, de “tempo perdido”.

***

 Novo arpão, o celular tocou impertinente sobre os lençóis verdes da cama recente. Em algum lugar íntimo, perto da intuição mórbida de uma parca, eu sabia que era, sabia quem era. Atendi trêmulo e a voz que respondeu ao meu tímido ‘alô’ perpassou meus tímpanos com a delicadeza de uma flecha. Imperiosamente, me chamava a condescender àquele pedido: Um reencontro, uma palavra de inquietação ante a distância que nos fizemos um ao outro. A revolta fazendo frente à ordem imposta. Neguei-me, furiosamente, sem voz, maquinando no ímpeto do momento desculpas frenéticas e frases de negação velada e quase inofensiva. A voz tornava-se efusiva, convocava a minha razão, evocava lembranças e passados enterrados há muito. Amedrontado, eu cedi. Presa fácil, eu me inclinei ao fio da navalha. Algumas ligações e palavras furiosas vindas de gente que bem me queria, estava pronto. Caminhando até o carro preto, subindo furiosamente a Abraão Caram, ignorando os sinais vermelhos, eu ia silencioso, desnudo de qualquer esperança. A sala se abriu numa profusão indistinta de luzes contra as minhas pupilas dilatadas. Teria sido melhor a cegueira: O sofá era o mesmo da partilha, esperando calado que novas histórias se fiassem em seu fuso negro. Despreocupadamente, um beijo, o deitar-se lívido sobre o couro macio. A compressão do corpo sobre o meu fazia em mim um sentido obsceno, aliviado das culpas de outrora, quem sabe, amanhã eu pudesse sorrir. Sem palavras, os olhares traçavam no ar novas promessas, novos pedidos, novos votos... Que logo se confundiam com o brilho dos abajures brancos. Lentamente os calores se esvaíram e justos e certos, encaramo-nos; Exaustos, nos olhávamos rígidos, como se nem nos conhecêssemos. Seria mesmo esse, Deus, o destino dos amantes? Olharem-se um dia, envoltos em brumas, incapazes de reconhecerem-se. Da incapacidade evidente, verteu lenta e densa essa convicção que envolve os amores velhos, esse véu fino que recobre as lembranças e lhes rouba nitidez, que as obriga a rotularem-se Passado. É difícil reconhecer os umbrais do fim, os rios que separam as margens de duas histórias. É pior ainda ver-se em campo aberto, em um tempo já à frente, sem mais algo que me leve ao leito abandonado, sem impulso, sem vontade, sem paixão. Ciente de que o que me moveu até ali foi reles sede, eu me permiti um sorriso torto, que foi correspondido de forma igual. Devastação momentânea, o voltar pesaroso para casa: Dessa vez, não a sós num banco de taxi. Cortejado até o destino final, acompanhado até o portão muito vermelho. Eu nunca me sentira tão sozinho.