Ele via o ônibus desafiando a gravidade pelas curvas tortuosas do bairro enquanto resmungava palavrões na voz baixa mais revoltada que se permitia. Controlador, orgulhoso, ele desenvolvia e definhava os próprios cânceres enquanto a raiva ia escorrendo em pulsações cardíacas que ritmavam como uma balada. Corrosivo como um pedaço de compreensão, ele foi deixando caírem no asfalto quente as ilusões todas ao passo que chegava mais perto de casa. Ele era um ponto em meio a tudo o que vira nos últimos dias, uma pequena desconfiança, uma possibilidade de desafeto. Ele não sabia o que o trouxera a esse lugar, o que pudera ser tão irresistível que lhe pudesse arrastar até ali. Não era inocente, houve um tempo em que ele desconfiava, casmurro entre pensamentos, muito nobre, muito Don, mas relevava os sinais, ignorava os avisos, apagava a luz e ia emergir entre os lençóis que mesmo grosseiros, deixavam transparecer algo de fragilidade. Não era ingênuo, não seria fácil enganar-se, não seria tão fácil engana-lo. Ele não sabia se por medo de estar só, por devoção ao ser amado, por uma libertina satisfação em chegar acompanhado às festas... Ele sabia que o próximo passo era muito mais que um frio na barriga, era saltar do décimo quinto andar sem saber se era capaz de planar. Mas a intransigência e a adrenalina que lhe emprestava a raiva eram um vício novo e doce. Ele estava, por fim, impregnado de uma nova certeza banhada de intenções sofríveis e se deliciava com as possibilidades que passavam reflexas pela janela embaçada. Nunca experimentara o controle, mas agora as rédeas eram suas, e estava tomado de novas racionalidades cruas... Indeclaradas, as guerras são muito mais violentas e os melhores e maiores delitos são traçados sob a carícia do silêncio. Nada seria tão novo que estivesse livre de empoeirar-se. Nada seria tão certo que não sofresse a navalha do acaso. Nada sacia mais que uma nova fome.
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