Fazenda das Aroeiras, 23 de agosto de 1947
Maria Helena,
Consegui dormir. Não um sono
daqueles que acostumei-me a dormir no Rio, atado à cama pelos seus fios de
cabelo maliciosamente presos às minhas fronhas. Um sono que não fosse sofrível.
Aconteceu como uma bomba: estava eu no meio do banho quando me lembrei de que
você tinha deixado aquelas cartas na cadeira de balanço da varanda. Eu fui até
lá, pé por pé, talvez por medo de acordar algo que estivesse dormindo no sereno
que caía sobre o papel amarelado. Penso que amareleceram um tanto mais com o tempo
que lhes fitei. Desconheço o tempo que
demorei ali, revendo os teus olhos de papel com medo que minhas mãos pesadas
cegassem a lembrança que eu tinha. Andei pela casa e pelas recordações com um
tom meio desesperado, meio exasperado. Há algumas semanas joguei fora aquele
seu vestido branco, estava lanhado de ranhuras amarelas; eu me arrependi
amargamente. As fotos eu guardei numa caixa e tomei o cuidado de esquecê-la com
cautela. Mas quanto às cartas da varanda, eu resmunguei contra elas toda a
vergonha que me causaram e a minha insistência em viver das migalhas que tu me
davas. Mas, do fundo de mim, eu admito que queria ser capaz de chegar mais
perto daqueles envelopes estufados, cheios que estavam de papel e petulância.
Os envelopes! Eles estavam frios quando eu me aproximei, não, eu não os toquei,
eu sei que estavam gélidos, não podiam estar diferentes. O Rio e a minha cama jamais estiveram tão frios. Eu
apenas os olhei por mais tempo enquanto, na verdade, olhava dentro do passado. As suas mãos eram quentes naquela madrugada,
enquanto eu me retorcia sob o peso das muitas doses de vodka e você ria. O som da voz do Carlos, na sala, ainda era nítido como se o lustre ainda vibrasse com a sua gargalhada. Penso que não seja a sala, aquele escárnio ainda faz meus pulsos cerrarem. Não sei como pude manter meus nervos. Eu sabia há muito tempo. Tenho amigos mais amigos do que deveriam, esses me contavam cada passo teu.Veja bem, eu te perdoei, mas não pude perdoar a mim mesmo. Não porque devesse ter lhe traído, me orgulho de não tê-lo feito, mas por ter perdido as muitas chances de apartá-la de mim. De te por distante, tão distante que nem por vontade eu pudesse vê-la. Mas, de certa forma, hoje eu sei o quanto é difícil te pôr à parte. E escrevi esta para contar das cartas, que voaram varanda abaixo com o chute que lhes dei. O céu do Rio se cobriu de lembranças e o Leme inteiro soube que ali morria um afeto. E por não me perdoar, me refugiei nas Aroeiras, onde vim buscar cura e descanso. Mas essa noite, a calma me invadiu com tanta força que me peguei de sobressalto dormindo sobre as almofadas da sala. E eu descobri que não havia te perdoado, mas a mim, sim. Não há que se perdoar. O problema das pessoas é que somos todos petulantes, soberbos. Somos presunçosos a ponto de achar que a vida de alguém é tão pequena que caiba dentro das nossas mãos, a ponto de poder chamar todo um mundo vivido por outro, de "meu". Ah, Helenita, ninguém pode chamar de meu um outro alguém. E aí morou meu erro. A minha arrogância me fez pensar que eu poderia disputar o teu afeto com outro homem, mas a minha soberba não viu que não havia disputa. Não se pode por em jogo aquilo que nunca pretendeu mudar de senhorio. Hoje sei que você jamais foi minha. Nenhuma outra há de ser. Nem eu pertencerei a ninguém. Mas as feridas todas marejaram o aprendizado das horas e eu o tomo por meu, hoje. Essa semana eu posso, já, dormir. Essa semana eu sei. Não estou deixando que você se perca no passado, não estou renegando teu nome, não estou me castigando. Helenita, essa semana eu estou querendo ser feliz.
Lúcio.
Carta enviada a Maria Helena do Prado e Costa por Lúcio Figueiredo e Costa em 1947, dois dias antes de sua morte, causada por inalação de gás proveniente de um vazamento na tubulação do casario onde viveu seus últimos dias.