terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Helenita


Fazenda das Aroeiras, 23 de agosto de 1947

Maria Helena,

           Consegui dormir. Não um sono daqueles que acostumei-me a dormir no Rio, atado à cama pelos seus fios de cabelo maliciosamente presos às minhas fronhas. Um sono que não fosse sofrível. Aconteceu como uma bomba: estava eu no meio do banho quando me lembrei de que você tinha deixado aquelas cartas na cadeira de balanço da varanda. Eu fui até lá, pé por pé, talvez por medo de acordar algo que estivesse dormindo no sereno que caía sobre o papel amarelado. Penso que amareleceram um tanto mais com o tempo que lhes fitei. Desconheço o tempo que demorei ali, revendo os teus olhos de papel com medo que minhas mãos pesadas cegassem a lembrança que eu tinha. Andei pela casa e pelas recordações com um tom meio desesperado, meio exasperado. Há algumas semanas joguei fora aquele seu vestido branco, estava lanhado de ranhuras amarelas; eu me arrependi amargamente. As fotos eu guardei numa caixa e tomei o cuidado de esquecê-la com cautela. Mas quanto às cartas da varanda, eu resmunguei contra elas toda a vergonha que me causaram e a minha insistência em viver das migalhas que tu me davas. Mas, do fundo de mim, eu admito que queria ser capaz de chegar mais perto daqueles envelopes estufados, cheios que estavam de papel e petulância. Os envelopes! Eles estavam frios quando eu me aproximei, não, eu não os toquei, eu sei que estavam gélidos, não podiam estar diferentes. O Rio e a minha cama jamais estiveram tão frios. Eu apenas os olhei por mais tempo enquanto, na verdade, olhava dentro do passado. As suas mãos eram quentes naquela madrugada, enquanto eu me retorcia sob o peso das muitas doses de vodka e você ria. O som da voz do Carlos, na sala, ainda era nítido como se o lustre ainda vibrasse com a sua gargalhada. Penso que não seja a sala, aquele escárnio ainda faz meus pulsos cerrarem. Não sei como pude manter meus nervos. Eu sabia há muito tempo. Tenho amigos mais amigos do que deveriam, esses me contavam cada passo teu.Veja bem, eu te perdoei, mas não pude perdoar a mim mesmo. Não porque devesse ter lhe traído, me orgulho de não tê-lo feito, mas por ter perdido as muitas chances de apartá-la de mim. De te por distante, tão distante que nem por vontade eu pudesse vê-la. Mas, de certa forma, hoje eu sei o quanto é difícil te pôr à parte. E escrevi esta para contar das cartas, que voaram varanda abaixo com o chute que lhes dei. O céu do Rio se cobriu de lembranças e o Leme inteiro soube que ali morria um afeto. E por não me perdoar, me refugiei nas Aroeiras, onde vim buscar cura e descanso. Mas essa noite, a calma me invadiu com tanta força que me peguei de sobressalto dormindo sobre as almofadas da sala. E eu descobri que não havia te perdoado, mas a mim, sim. Não há que se perdoar. O problema das pessoas é que somos todos petulantes, soberbos. Somos presunçosos a ponto de achar que a vida de alguém é tão pequena que caiba dentro das nossas mãos, a ponto de poder chamar todo um mundo vivido por outro, de "meu". Ah, Helenita, ninguém pode chamar de meu um outro alguém. E aí morou meu erro. A minha arrogância me fez pensar que eu poderia disputar o teu afeto com outro homem, mas a minha soberba não viu que não havia disputa. Não se pode por em jogo aquilo que nunca pretendeu mudar de senhorio. Hoje sei que você jamais foi minha. Nenhuma outra há de ser. Nem eu pertencerei a ninguém. Mas as feridas todas marejaram o aprendizado das horas e eu o tomo por meu, hoje. Essa semana eu posso, já, dormir. Essa semana eu sei. Não estou deixando que você se perca no passado, não estou renegando teu nome, não estou me castigando. Helenita, essa semana eu estou querendo ser feliz.
Lúcio.


Carta enviada a Maria Helena do Prado e Costa por Lúcio Figueiredo e Costa em 1947, dois dias antes de sua morte, causada por inalação de gás proveniente de um vazamento na tubulação do casario onde viveu seus últimos dias.

domingo, 27 de janeiro de 2013

Mensagem de Aniversário.


O problema é que um dia chega, porque sempre chega, aquela noite que eu sempre e tanto evito. A lembrança, vestida de taça inocente, me caça e arranca do meio mais turvo daquele vinho vinagrado da venda da esquina. É quando você está bêbado que as lembranças do passado e os planos natimortos de um futuro que nem aconteceu te alcançam, e com seus rasantes tortos, minguantes, refazem a sua noite em novas filosofias falidas e jazz infeliz. O piano, o sax sangrando notas rascantes; eu, vinho, você. O problema é que eu não li a mensagem que você me mandou – acho que era sua – eu perdi muitas mensagens naquele dia. Apagando furiosamente qualquer coisa que pudesse me convencer que o caminho ficaria mais fácil com você. E como eu me culpo por isso... Eram conversas, parabenizações, graças aos muitos Deuses, todas banhadas cuidadosamente com a polidez cinzenta dos amigos distantes e conhecidos da família. Era uma mensagem, eu a vi vibrando a tela brilhante do meu celular mas, tempo depois, desapareceu e levou consigo meu esgar de desistência. No meu anseio por recuperá-la eu devassava meus e-mails, meus “inboxes”, procurando por uma única prova de que você estaria retornando, depois de toda a loucura daquele carnaval, do meu carnaval, à minha vida. Insucesso. Quando se gosta de alguém, alguém para quem você indicou a saída, é difícil não desejar um retorno. Não me culpe por ser desejoso, insistente, voluntarioso. O problema é não ter a menor idéia do que estaria escrito lá, com as suas palavras mal escolhidas... Eu não sei se eram só os parabéns secos de alguém que se foi, se eram parabéns. Mas as palavras eram suas e, por isso, eu nunca encontraria outras melhores.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Das Diferentes Solidões.

Era quinta-feira quando a solidão caiu pesada sobre o telhado do quinto andar do prédio de esquina. O apartamento, muito cheio de luzes, foi esfriando ao som de uma valsa estranha que tamborilava serena junto com a chuva. Algumas cartas ainda estavam espalhadas sobre a mesa da sala, algumas garrafas cheias e um som estranho a ele, que ainda dormia sobre os lençóis da semana passada: silêncio. Era domingo quando ela descobriu que não fizera nada o fim de semana todo. Apressada, ela correu pela sala e agarrou o telefone com o desespero de um náufrago e discou, quase a esmo, navegando chamada pós chamada, por uma mar de amigos ocupados, de reuniões na segunda, aulas de dança de salão... Até que um "não", mal educado, perfurou a sua angústia e deixou-a tonta, ali sentada, enquanto a irmã menor ajudava a mãe a preparar o jantar dançando mambo. Era madrugada de um sábado quando elas saíram da boate, insatisfeitas, sugerindo uma para a outra esses mistérios que as mulheres imaturas demais para falar usam para esconder intenções assassinas. Não era bem traição, eles não estavam mais juntos, mas ele não deveria se recuperar tão rápido do término do namoro. Ela mal tinha beijado outros caras, era tão injusto... E o motorista quase dormia sobre o volante do taxi, acordando completamente quando a salsa esquisita do rádio trovejava um tambor qualquer. Era manhã de uma terça-feira ensolarada, dessas que fazem os olhos arderem, quando ele pisou o gramado verde. Tinha um ramalhete nas mãos, meia dúzia de flores que não significavam absolutamente nada para ele. Ele era muito novo pra entender aquele gesto tão repetido, tão significativo. Acompanhado, ele chegou ao local, abaixou-se e depositou as flores sobre a placa de granito recém colocada - fria como a morte - e saiu sem olhar. Alguma coisa nele doía enquanto voltavam pra casa. Um vazio, ou qualquer falta, sentado no banco de trás, quando um bolero antigo que ele conhecia começou a tocar no CD player. Ele quase não viu uma lágrima pelo retrovisor enquanto sua mãe disse: "Esse é de quando seu pai e eu nos conhecemos." Ele quase não sentiu que estava vivo, até que fosse obrigado a descer. Dessa vez sem ajuda. Sozinho.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Das Gentes de Abril.


A minha diferença mais primordial é que eu quase nunca precisarei de motivos. Brisa qualquer me leva pra longe, marola pouca impulsiona meus braços pra fugir mar adentro. Nas asas transparentes dos pretextos, eu voo alto, ao sabor de uma vontade ensandecida, ignorando os faróis, que são pra marinheiros inexperientes. Alto meu voo, não haverá vendaval que me mova, terremoto que me faça cair, temporal que me faça parar. Eu decido a direção das minhas tempestades, mas nunca sei que terras elas vão molhar.