terça-feira, 15 de maio de 2012

Intransigência.


Porque até a ignorância mais animal é melhor que a intransigência, eu declinei. De fato, eu me cansei de andar às voltas com os problemas alheios e deixar os meus, irresolutos. Cansei de fenecer a sós, depois de um dia inteiro pondo lastro ao sonho dos outros, plantando sanidade onde havia temeridade e dobrando a poder de argumento a indignação convulsiva e burra. Eu me cansei de me ver imerso na bruma bêbada das tardes sorridentes e ter a noite me presenteando com a clareza cruel das lâmpadas altas e a velocidade das horas necessárias. Eu não suporto mais o peso das lágrimas alheias e de presenciar meus conselhos lamentavelmente mal interpretados serem aplicados como regra última. Não sei mais lidar com as tempestades de outros. Não posso mais decantar salinas inteiras dos mares alheios e encontrar a minha salina intocada. Cansei de trocar as páginas dos meus livros pelos capítulos intrincados da novela alheia. Cansei-me de compreender os pontos de vista mais errados, de ser compassivo ou conivente, cansei de condescender e de prescindir. Eu me exauri na complicada alquimia de tantos verbos, e hoje não sou capaz de me preocupar com os traquejos da praxe, com as palavras certas, com o pragmatismo covarde e com a indignidade diplomática necessárias ao conselheiro. Cansei-me de assistir do alto de uma torre, cidades inteiras queimarem sem tomar partido, cansei de ver a culpa de cada pequena chama ser-me atribuída. Eu cansei de defender os interesses mais delicados e em paga, receber os juízes mais atrozes. Eu não sei mais tolerar os cataclismos alheios com naturalidade, eu não posso mais me segurar e eu perdi a prática dos sorrisos educados. Eu simplesmente não vejo mais a necessidade de me envolver em desmoronamentos que eu não causei. Irremediavelmente me cansei da intransigência. Me cansei dos que não reconhecem erros, dos que não se dobram, dos que correm contra a lâmina, da intelectualidade vaidosa, dos que pensam conhecer o mundo, dos que vivem em busca de algo pra buscar. Eu me cansei daqueles que “têm certeza”.

sábado, 12 de maio de 2012

Do Abismo.


Descobertas são sempre traumáticas, se são a respeito de si mesmo, então, pior ainda. Eu escolhi me alienar das crises alheias e me render a esse atraente direito de ser irracional. Pus as razões dos outros de lado e me permiti submergir em uma crise, dessas que se encurvam sob o peso da água quente debaixo do chuveiro. Essas tardes de sexta, que exigem aos gritos um pouco de insensatez que esverdeie o céu azul, trazem um pouco de compreensão, só o suficiente para que você perceba... Sozinho, à deriva, numa rua cheia de pessoas que olham seus passos pretensiosos em direção ao nada, você anda com a suavidade de uma estátua. Descrevendo passos que mesmo sem destino, continuam preocupados, altivos, coléricos. Acostumado ao grilhão acobreado da pressa, prefere se agarrar com força aos ponteiros de um relógio qualquer pra que não perca o medo de se atrasar que tanto preza. Essa necessidade da pressão que impulsiona talvez seja o açoite da minha vontade bem cortada e costurada aos interesses, deveres e rotinas da praxe sobre a carne dura e negra dos meus desejos que queimam sem cessar. Mas uma tarde, as companhias se tornam garrafa vazia e uma nova necessidade cresce viçosa: solitude e privação inauguram o deserto que eu criei para o meu jejum. E você se deixa sentir coisas que sequer percebia que podia sentir. Saudade de amigos, de vozes, de cheiros, de toques e risos. Vontade de correr com vento lambendo o rosto, um abraço esquecido, um suspiro inaudível... Despercebidas, essas vontades permeiam o curso das horas, dando o sabor amargo que os dias prescindem. E de repente, descobre uma necessidade louca de permissividade: Quem nunca se permite sentir o que não quer, não compreende os próprios desejos, não perdoa os deslizes sem culpas desnecessárias e não saberá o gosto surreal de uma manhã de domingo despreocupada e lúcida. E se cansa das insistências, das tentativas toscas e aprende a sorrir, mesmo frente ao abismo mais profundo. Aprende a se permitir. Aprende a se perdoar e a sorrir, mesmo quando o abismo fica dentro de você.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Da Liberdade Forçada.


E da espera, do costume nasce a lentidão das horas e o tempo juntos é obrigação. Sempre chega a hora e para alguém, liberdade deixa de ser objeto de vontade e decai lentamente, revirando com dedos longos as correntes de lembranças deformadas pelo tempo. Decantado o encanto, liberdade se dobra em decorrência simples e fática do descuido, da tempestade velada pela indiferença educada. Liberdade indesejada, passa rascante íris a dentro degradando em cacos tão transparentes quanto afiados a lembrança que ora foi sólida. Os olhos verdes dele não verteriam lágrima, não verteriam sangue, não verteriam olhar de desagrado ou desacato: e a dança do fim se retraça sob os balcões enfeitados do teatro. Passos lentos e longos, os olhares medrosos por se cruzarem no desatino das aleatoriedades do acaso. Aquele que esteve preso se liberta por pura necessidade, sem vontade, sem ranger de dentes. Exilado, se sente só, acostumado às ataduras quentes sobre os ferimentos muito novos e vermelhos causados pelo calor da presença. E trata as queimaduras como se fossem pequenas medalhas revestindo o peito nu que antes se cobria de lembrança. E o pragmatismo das palavras bem escolhidas se mostra mais covardia que praticidade e deixa entrever o sangue que ainda corre. Vermelho, denso, tão divino quanto qualquer ser humano pode ser.