Chove. Como se nunca houvesse existido sol que me queimasse
um pouco mais o ânimo, já adestrado, chove. Ali fora chove e cá dentro, de
alguma forma, também. As gotas apáticas disputam com meus olhos perdidos um
espaço no negrume e no vazio. O céu noturno, por certo e por sorte, é terra de
ninguém, e é ali onde eu deixo meus olhos vagarem sem as correntes do dia. As
densas cortinas caem das nuvens perolando a solidez das casas da avenida desabitada
de carros e lotada de olhos. Quantos olhos, pequenos sobre o negro asfáltico,
tentaram ver algo mais que os gestos de um taxista descuidado, o esgar
agitado do vestido da moça com o livro nas mãos, a ruga naqueles olhos claros,
do tamanho do vazio no meu peito. Eu costumava dizer que aqueles olhos tinham
mesmo a cor da folha que envelheceu no fundo de um riacho, e as minhas metáforas
foram ficando oxidadas na profusão das certezas. Que há com um pouco de
fantasia, o charlatanismo pálido de um lápis, meia dúzia de mentiras rebuscadas
em uma ópera qualquer? Certeza em excesso também cega, amor. Eu? Resignei-me
diante da polidez de um ou dois sorrisos e eximi de culpa as minhas razões de
queimar. Eram só lenha nova atirada ao acaso faminto de novas labaredas,
lambendo os meus olhares, meus desatinos, meus desafios e desterros
espontâneos. Quisera explicação, meu bem... A intermitência dos humores humanos
ou a ânsia de te dar algo que ninguém jamais pudera. Em nome da ânsia eu corri,
eu emudeci meus braços e dei voz a meus olhos. Palavras. Minhas joias são
feitas de palavras. A minha lida não cabe no veludo das horas, mas tem lugar na
aspereza das páginas. Eu rasguei com caneta e suor a carne dura das páginas que
me recobriam a pele e tracei na nudez súbita das minhas sentimentalidades, a senda tortuosa
de confessar à tinta e ao papel que é que se sente. Ah, amor, existe tanto entre a chuva e as minhas
tempestades, e existe tanta afetação na simplicidade cá dentro. Ainda que negro, não haverá
céu nublado que me escuse de sentir, dolorosamente, sentir sorrindo. Não haverá outra caneta que te dê com a
precisão dos meus olhos aquilo que se viu naquela noite chuvosa. E chove, a
despeito da minha casa vazia da sua voz, chove. A leitura vã anuviou meus olhos
e a minha escrita é sempre mais sofrer que morte por si só, é sempre mais chuva
e ácido que a sorte púrpura das normalidades; Que normalidades cortantes são as
tuas esperas, os meus anseios sempre cada dia mais esperançosos e a sempre nova
turbidez dos meus olhos quando veem os teus. A minha memória é curta, meu bem,
eu não sei mais como me lembrar de tantas fotos e nem quero relembrar as
lâminas. Mas eu me lembro dos teus olhos, do abismo castanho e por vezes negro.
Eles mudaram desde aqueles dias, hoje são mais profundos, - ou talvez não
tenham mudado - só eu que me aproximei e lhes mirei um pouco mais de perto. Que irônica
é a visão dos teus olhos, meu bem. Quanto mais perto, mais fundo, quanto mais
perto menos fôlego, quanto mais perto, mais abismo. Nunca me interessou a
profundidade das poças d’água, mas o quanto do céu elas podiam refletir.
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