terça-feira, 1 de outubro de 2013

De Olhos, Ironia e Abismo.

Chove. Como se nunca houvesse existido sol que me queimasse um pouco mais o ânimo, já adestrado, chove. Ali fora chove e cá dentro, de alguma forma, também. As gotas apáticas disputam com meus olhos perdidos um espaço no negrume e no vazio. O céu noturno, por certo e por sorte, é terra de ninguém, e é ali onde eu deixo meus olhos vagarem sem as correntes do dia. As densas cortinas caem das nuvens perolando a solidez das casas da avenida desabitada de carros e lotada de olhos. Quantos olhos, pequenos sobre o negro asfáltico, tentaram ver algo mais que os gestos de um taxista descuidado, o esgar agitado do vestido da moça com o livro nas mãos, a ruga naqueles olhos claros, do tamanho do vazio no meu peito. Eu costumava dizer que aqueles olhos tinham mesmo a cor da folha que envelheceu no fundo de um riacho, e as minhas metáforas foram ficando oxidadas na profusão das certezas. Que há com um pouco de fantasia, o charlatanismo pálido de um lápis, meia dúzia de mentiras rebuscadas em uma ópera qualquer? Certeza em excesso também cega, amor. Eu? Resignei-me diante da polidez de um ou dois sorrisos e eximi de culpa as minhas razões de queimar. Eram só lenha nova atirada ao acaso faminto de novas labaredas, lambendo os meus olhares, meus desatinos, meus desafios e desterros espontâneos. Quisera explicação, meu bem... A intermitência dos humores humanos ou a ânsia de te dar algo que ninguém jamais pudera. Em nome da ânsia eu corri, eu emudeci meus braços e dei voz a meus olhos. Palavras. Minhas joias são feitas de palavras. A minha lida não cabe no veludo das horas, mas tem lugar na aspereza das páginas. Eu rasguei com caneta e suor a carne dura das páginas que me recobriam a pele e tracei na nudez súbita das minhas sentimentalidades, a senda tortuosa de confessar à tinta e ao papel que é que se sente. Ah, amor, existe tanto entre a chuva e as minhas tempestades, e existe tanta afetação na simplicidade cá dentro. Ainda que negro, não haverá céu nublado que me escuse de sentir, dolorosamente, sentir sorrindo. Não haverá outra caneta que te dê com a precisão dos meus olhos aquilo que se viu naquela noite chuvosa. E chove, a despeito da minha casa vazia da sua voz, chove. A leitura vã anuviou meus olhos e a minha escrita é sempre mais sofrer que morte por si só, é sempre mais chuva e ácido que a sorte púrpura das normalidades; Que normalidades cortantes são as tuas esperas, os meus anseios sempre cada dia mais esperançosos e a sempre nova turbidez dos meus olhos quando veem os teus. A minha memória é curta, meu bem, eu não sei mais como me lembrar de tantas fotos e nem quero relembrar as lâminas. Mas eu me lembro dos teus olhos, do abismo castanho e por vezes negro. Eles mudaram desde aqueles dias, hoje são mais profundos, - ou talvez não tenham mudado - só eu que me aproximei e lhes mirei um pouco mais de perto. Que irônica é a visão dos teus olhos, meu bem. Quanto mais perto, mais fundo, quanto mais perto menos fôlego, quanto mais perto, mais abismo. Nunca me interessou a profundidade das poças d’água, mas o quanto do céu elas podiam refletir.

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