domingo, 13 de outubro de 2013

Frágil.

Tem alguém que eu amo muito dormindo numa cama de hospital hoje. Não, não se preocupe. Ela está bem. Foi só um tombo e uma fratura simples. Uma cirurgia e dois pinos e ela vai estar cantando de novo, aqui no quarto ao lado, sentada na cama e sorrindo quando eu passar apressado corredor-adentro. Mas o que me fez escrever hoje foi a fragilidade. Eu acabei sozinho em casa e a noite de domingo me fez pensar sobre o que eu faria sem ela, sem eles, sem essas pessoas tão indispensáveis. Eu pensei sobre a minha casa, sobre as noites de riso, o bombom que eu comprei pra ela semana passada, sobre os meus lençóis limpos, sobre os dias de chuva, sobre ser compreendido e a maravilha que é compreender. Pensei sobre a minha saudade e sobre o dia de amanhã. Não é bom sentir-se frágil, ver que um detalhe tão pequeno como uma ausência temporária deixa o dia um pouco mais amargo. Fragilidade e a ciência dela são algo necessário na medida em que te protegem da temeridade de tentar voar sem ter asas. Mais difícil ainda é ver que aqueles que você ama também são de carne e osso. Um dia eu a vi chorar porque estava com uma dor que o remédio da horta não podia curar. E nem em cem mil anos eu poderia deixar de lembrar que ela não era mais de ferro, e que aqueles olhos verdes iguais aos meus, ficaram turvos. E um dia eu fui andar de bicicleta e caí de um jeito tal, que minhas pernas ficaram presas entre o quadro da bicicleta e o chão e eu não soube o que fazer. Até que ela me achou ali, quietinho, entre a dor de estar preso e o medo de doer mais quando eu saísse dali. Ela me pôs no colo, me chamou de bobo e em um estalar de dedos eu sorri de novo. Eu era forte. Eu era vivo. Eu sorria completamente despreocupado. Alguma coisa em mim era ferro puro. A tarde descia pesada sobre BH quando o telefone tocou e ela disse que estava preocupada. Os exames não deram muito bons resultados e ela tinha medo. Ela era frágil. Eu quis deitar a cabeça dela no meu colo e deixar ela dormir ali um par de horas, ou o suficiente pra ela entender que eu estaria ali até que nada mais existisse, porque eu sou assim. De ferro. E depois que eu sorri, tirei umas fotos bobas e enviei pro e-mail dela, quis poder chorar um pouco. Eu não choro tanto assim tem tanto tempo...  Eu tenho tanto que amadurecer ainda, minhas veias ainda são esverdeadas e eu mal saí dos 20. Eu ainda não sei chorar. Eu sou frágil, eu me preocupo a ponto de não dormir, eu vou mal nas provas, eu me mato pra ter tempo e pra ser o cara que esperam que eu seja. Mas eu, ela, eles todos, nós somos carne e osso, somos todos um pedaço de sentimento. E de algum modo estranho, somos essa fragilidade toda... A falta que eu sinto deles todos, essa falta que me diz que quem ama de verdade é sempre capaz de esperar. Ela me disse quando eu tomei o ônibus pra voltar pra Faculdade: Ainda que distantes, sempre juntos. De algum modo, essa fragilidade é que me faz forte. E ela sempre vai ter alguém de ferro pra se apoiar: "Deixa de se preocupar com essas besteiras, corre lá e vai ser feliz."

terça-feira, 1 de outubro de 2013

De Olhos, Ironia e Abismo.

Chove. Como se nunca houvesse existido sol que me queimasse um pouco mais o ânimo, já adestrado, chove. Ali fora chove e cá dentro, de alguma forma, também. As gotas apáticas disputam com meus olhos perdidos um espaço no negrume e no vazio. O céu noturno, por certo e por sorte, é terra de ninguém, e é ali onde eu deixo meus olhos vagarem sem as correntes do dia. As densas cortinas caem das nuvens perolando a solidez das casas da avenida desabitada de carros e lotada de olhos. Quantos olhos, pequenos sobre o negro asfáltico, tentaram ver algo mais que os gestos de um taxista descuidado, o esgar agitado do vestido da moça com o livro nas mãos, a ruga naqueles olhos claros, do tamanho do vazio no meu peito. Eu costumava dizer que aqueles olhos tinham mesmo a cor da folha que envelheceu no fundo de um riacho, e as minhas metáforas foram ficando oxidadas na profusão das certezas. Que há com um pouco de fantasia, o charlatanismo pálido de um lápis, meia dúzia de mentiras rebuscadas em uma ópera qualquer? Certeza em excesso também cega, amor. Eu? Resignei-me diante da polidez de um ou dois sorrisos e eximi de culpa as minhas razões de queimar. Eram só lenha nova atirada ao acaso faminto de novas labaredas, lambendo os meus olhares, meus desatinos, meus desafios e desterros espontâneos. Quisera explicação, meu bem... A intermitência dos humores humanos ou a ânsia de te dar algo que ninguém jamais pudera. Em nome da ânsia eu corri, eu emudeci meus braços e dei voz a meus olhos. Palavras. Minhas joias são feitas de palavras. A minha lida não cabe no veludo das horas, mas tem lugar na aspereza das páginas. Eu rasguei com caneta e suor a carne dura das páginas que me recobriam a pele e tracei na nudez súbita das minhas sentimentalidades, a senda tortuosa de confessar à tinta e ao papel que é que se sente. Ah, amor, existe tanto entre a chuva e as minhas tempestades, e existe tanta afetação na simplicidade cá dentro. Ainda que negro, não haverá céu nublado que me escuse de sentir, dolorosamente, sentir sorrindo. Não haverá outra caneta que te dê com a precisão dos meus olhos aquilo que se viu naquela noite chuvosa. E chove, a despeito da minha casa vazia da sua voz, chove. A leitura vã anuviou meus olhos e a minha escrita é sempre mais sofrer que morte por si só, é sempre mais chuva e ácido que a sorte púrpura das normalidades; Que normalidades cortantes são as tuas esperas, os meus anseios sempre cada dia mais esperançosos e a sempre nova turbidez dos meus olhos quando veem os teus. A minha memória é curta, meu bem, eu não sei mais como me lembrar de tantas fotos e nem quero relembrar as lâminas. Mas eu me lembro dos teus olhos, do abismo castanho e por vezes negro. Eles mudaram desde aqueles dias, hoje são mais profundos, - ou talvez não tenham mudado - só eu que me aproximei e lhes mirei um pouco mais de perto. Que irônica é a visão dos teus olhos, meu bem. Quanto mais perto, mais fundo, quanto mais perto menos fôlego, quanto mais perto, mais abismo. Nunca me interessou a profundidade das poças d’água, mas o quanto do céu elas podiam refletir.