quarta-feira, 12 de outubro de 2011

É vontade.

Coisa ingrata é a vontade. Ela se infiltra no meio da tarde ensolarada, se esconde lívida de desejo, retorcendo as mãos, em uma caneca de café qualquer e espera. Espera calada, jogada no fundo turvo e líquido. Coisa calma é a vontade, com seus longos dedos cheirando perfume antigo e seu abraço frio, esperando o dia em que será satisfeita em sua fome. Coisa vadia é a vontade. Gato preto arranhando muralhas na esperança de transpor qualquer sonho tolo, lambendo muralhas inteiras construídas com o apreço mudo de quem já sofreu as perdas do amor. Coisa insolente é a vontade, olhando a temperança com o desdém de quem já leu Dostoievski e uma taça de Bourbon fumegando desejo entre os dedos. Coisa atemporal é a vontade, com suas roupas corroídas e olhos vivos, escorrendo decadentes pelas horas ínsones da madrugada de domingo. Coisa engraçada é a vontade, girando incômoda no estômago enquanto o desejo ri, numa ciranda descontrolada, desnuda de qualquer limite ou moral. Coisa assassina é a vontade, apertando a garganta, estremecendo as mãos, sufocando a voz. Coisa insana é a vontade, se dobrando em mesuras arcaicas pra quem não merece, esquartejando verbos imperativos ao sabor do humor acidental de uma taça de vodka. Coisa solitária é a vontade. Dançando sozinha pela sala vazia, olhando os cômodos da casa sem paixão, riscando com giz branco o negro-insônia da noite. Coisa arrogante é a vontade. Superiora de todas as gárgulas, cavalgando a racionalidade, puxando as rédeas pra mais perto do abismo. Coisa rascante é a vontade, descendo a seco na garganta quando a noite acaba sem pecados a redimir, secando a boca e arrepiando a pele. Coisa veemente é a vontade, gritando soberba em meio à multidão vaporosa de vozes, se fazendo ouvir entre o freio da razão e a lâmina da loucura. Coisa desnecessária é a vontade, sangrando um milhão de novos motivos todos sem sequer razão de ser, sem necessidade, sem mais precisão, sem possibilidade... Arrastando as correntes molhadas de lágrimas, chorando poças inteiras de pura calamidade. Coisa fria é a vontade, congelando as lágrimas, marcando os passos no chão esbranquiçado, azulando o outrora vermelho dos lábios, dos olhos, da tarde. Coisa indecifrável é a vontade: Revivendo na morte, agradecendo a saudade, congelando entre chamas, calma em meio à desgraça, cada dia mais divina, cada dia mais digna do homem.

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