segunda-feira, 30 de junho de 2014

Olhos.

Tem qualquer coisa de azul naqueles olhos de inverno. Não era só o jeito de olhar que era frio, eram os olhos, o abrir-se sobre as manhãs que celebravam o frio com a brancura do gelo que queimava, indiferente à súplica de tudo que era verde, as plantações. Dentro daquelas pupilas era sempre inverno, entrecortado de ventos e tempestades que rugiam todos os impropérios que cá, fora, não se escutava. Dia alto, eu tinha medo que eles me olhassem, quando em vez, e meu céu azul se turvasse tão negro quanto aqueles olhos. Medo que eu desafiava buscando, num sonho ou num rasante sobre a praça, que me chegassem sem aviso aquelas íris congeladas. Sabe como é a vontade de homem, gosta mesmo do que desafia, do que não pode, daquilo que a praxe desconta da lista das boas famílias. Daquilo que não tem na praça de chão quadriculado da cidade entre as montanhas. De quando em vez, se tremiam as minhas mãos que tentavam enganar o frio, os olhos se riam e me perguntavam na mudez dos dentes brancos se não era aquele o mesmo que eu andara buscando. Eram um escárnio aqueles olhos abertos sobre os meus, um eterno rir-se entre provocação e condescendência e uma tarde azul do fim de junho. Quanta ironia morava naqueles olhos de inverno, que miravam a rua com desprazer, quase insolente, zombando das moças fúteis, dos moços bobos e da chuva lenta demais que não parava de acinzentar a tarde nascida pra ser laranja. Chuva. Quando chovia, levantava o negrume das pupilas ao céu que, em nome de um reconhecimento qualquer, parecia sorrir dentre as nuvens num acordo mudo. Baixava os olhos, trazia-os pros meus e confirmava a chuva na sabedoria que só a obviedade mais doce pode ter. Pouco falava, os olhos contavam mais; Da atenção que eu lhes dei pude muito ver e bebi da mudez que se aconchega sob a desnecessidade da palavra quando do bem-olhar. Muito deixei de dizer ali sobre aquelas águas negras. Eu tinha o medo. Medo que de tanto olhar-me, gastassem-se aqueles espelhos e não voltassem mais a me ver, então não lhes olhava em nome da minha própria imagem ali refletida, guardada dentro daquelas águas muito fundas. Houvesse olhos mais profundos, devem ter morrido nas próprias águas, afogados nos desejos que guardavam, mudos a espera de uma libertação qualquer que lhes rasgasse o silêncio. Mas um dia o medo novo me tomou pela mão e mirei-lhes de perto, achei que as águas eram fundas e de tanto olhar, ali fiquei, passaram-se uns anos e as horas trouxeram o horror aos meus olhos. De tanto mirar-lhes, ali me afoguei, pois a água escura não guardaria meu medo, mas guardará meu segredo.